A Lei n° 11.101, de 2005, que trata da falência e recuperação de empresas, completará uma década de vigência no próximo ano. Isso significa que seus dispositivos estão pacificados e que é possível antever com segurança suas respostas aos problemas do dia a dia da empresa em crise? Certamente não. Como dizia o jurista e filósofo alemão Rudolph von Jhering no livro “A luta pelo direito” – que é até hoje leitura obrigatória para os estudantes -, o direito não é como o idioma, que vai-se alterando natural e imperceptivelmente com a adoção corriqueira de novas expressões ou estruturas e desuso de outras, mas é fruto do fervoroso embate entre o que está consolidado e o que deveria ser, entre o status quo e o idealizado, num movimento perene de autorenovação.
Assim se dá com o problema dos garantidores pessoais dos débitos daquele que pede recuperação judicial. A lei determina que com o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial pelo juiz sejam suspensas pelo prazo de 180 dias as ações e execuções movidas contra a devedora. A suspensão tem objetivo claro: dar à devedora um período de estabilidade para que se dedique a preparar um plano de recuperação e convencer os credores a aprová-lo em assembleia, sob pena de ter sua falência decretada. Uma vez aprovado o plano, o juiz deve homologá-lo para que as obrigações originais sejam substituídas por sua nova versão (que pode representar prorrogação de vencimento, desconto, parcelamento etc), no que o direito chama de “novação”- cria-se uma nova obrigação com o intuito de extinguir a anterior.
O problema está no tratamento dos coobrigados, aqueles que se comprometeram pessoalmente, junto ao credor, a saldar a obrigação da devedora. São os avalistas, os fiadores e os demais coobrigados, tão comuns na vida empresarial. Se o devedor não precisa pagar sua obrigação porque foi suspensa por 180 dias, ou porque foi “novada” – substituída por outra – poderia o credor buscar satisfazer o seu crédito nos termos originais executando diretamente garantidores? Em outras palavras, se o “devedor principal” não pode ser cobrado porque as execuções estão suspensas ou porque pelo plano aprovado seu vencimento prorrogou-se por anos e estará submetido a desconto, pode o pagamento integral e imediato do débito ser exigido do fiador, do avalista ou do coobrigado, com base na obrigação original?
A fiança não se extingue com o processamento da recuperação judicial ou a homologação do plano
A Lei n° 11.101, em seus artigos 49, parágrafos 1° e 59, assegura aos credores antes e depois da homologação do plano de recuperação judicial aprovado em assembleia-geral de credores, a “conservação de seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”.
Diante dos inúmeros casos de avais – principalmente entre empresas do mesmo grupo econômico e de sócios ou administradores -, a jurisprudência fixou entendimento de que o avalista poderia sim ser cobrado imediatamente pelo valor total do débito avalizado, ainda que a obrigação original tivesse sido suspensa ou alterada pelo plano.
Boa parte da doutrina passou então a defender a aplicação da solução pacificada no caso de aval a todas as situações de garantia pessoal. O problema é que a situação paradigma – do avalista – é excepcional. O regime do aval, garantia fidejussória (pessoal) aplica-se somente para títulos de crédito, que se submetem à logica cambiária. No aval, negócio jurídico unilateral, a obrigação do avalista constante no título de crédito, é plenamente “autônoma” em relação à obrigação garantida. Os vícios ou nulidades desta, em regra, não a contaminam. E o avalista é obrigado solidariamente com o avalizado, ou seja, o credor pode cobrar do avalista mesmo antes do avalizado – não há “benefício de ordem”. Como a obrigação do avalista é autônoma, faz sentido reconhecer que o credor da devedora em recuperação judicial possa cobrá-la mesmo em caso de novação ou no período de suspensão de 180 dias. Afinal, em qualquer hipótese, a alteração da obrigação principal não afeta a garantia – autônoma – do avalista.
Mas esse não é o caso das demais garantias pessoais, especialmente a fiança. Fiança é negócio jurídico bilateral por meio do qual o fiador garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor (afiançado), caso este não a cumpra. A obrigação do fiador é “acessória” à obrigação principal do afiançado. Como aponta o corolário lógico da acessoriedade: o acessório segue a sorte do principal. Disso decorre que a existência da fiança depende da existência da obrigação garantida, a invalidade da obrigação garantida afeta a fiança (salvo caso de incapacidade), e a exigibilidade da fiança depende da exigibilidade da obrigação garantida. Além disso, o fiador pode exigir que o patrimônio do devedor seja esgotado antes de responder pelo débito, salvo em caso de renúncia ao benefício de ordem.
Aplicar automaticamente à fiança as mesmas soluções atribuídas ao aval é incoerente e, acima de tudo, incorreto. Garantir o direito do credor contra o fiador da devedora em recuperação judicial não significa aplicar-lhe o mesmo tratamento dado ao aval. Quando a Lei n° 11.101 prevê que as garantias “permanecerão” mesmo em caso de suspensão ou novação nada indica que se manterão “nos mesmos parâmetros e condições” originalmente contratado. Quanto ao aval, essa consequência advém não da Lei n° 11.101, mas da natureza cambiária (e autônoma) da obrigação do avalista. Mas fiança não é autônoma, é acessória. Nem se poderia interpretar os dispositivos da Lei n° 11.101 no sentido de, implicitamente, alterar a própria natureza do instituto. Seu caráter acessório permanece, e o que se excepciona é somente a regra segundo a qual a novação da obrigação significa a extinção da garantia.
A fiança, então, não se extingue com o processamento da recuperação judicial ou a homologação do plano (e a novação dela decorrente). Mas, como acessória que é, tem seu conteúdo e exigibilidade vinculados ao conteúdo e exigibilidade da obrigação principal: o fiador continua obrigado na exata medida dos novos termos da obrigação afiançada, retornando aos originais em caso de convolação da recuperação judicial em falência, nos termos do artigo 61, parágrafo 2° da Lei 11.101.
Francisco Satiro é professor de direito empresarial da FGV Direito SP e diretor do IBR – Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas.