Por: José Afonso Leirião Filho
O tema da recuperação judicial de empresas se tornou assunto cotidiano de empresários e juristas, especialmente após o recorde histórico do número de pedidos de recuperação no ano de 2016 (foram 1.863 pedidos nesse ano, segundo o Serasa Experian). Mesmo com queda sensível no ano seguinte, o primeiro semestre de 2018 demonstrou crescimento de 10% no número de pedidos de recuperação judicial se comparado com o ano de 2017, com 753 pleitos, segundo maior indicador histórico desde o início de vigência da Lei n° 11.101/2005.
Dentre as problemáticas jurídicas relacionadas às recuperações judiciais, sempre marcadas por embates entre advogados de devedores e de credores, nem sempre pautados no rigor das previsões trazidas pela legislação de insolvência, destaca-se atualmente a discussão a respeito dos bens de capital essenciais da sociedade que lança mão do favor legal da recuperação judicial.
Isto, pois em seu parágrafo terceiro, o artigo 49 da Lei de Falências – previsão mais polêmica da lei – fixa as hipóteses de créditos que não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, cenários em que prevalecem os direitos de propriedade do credor sobre os bens dados em garantia, destacando-se a situação da garantia fiduciária. Afora a discussão inerente à chamada extraconcursalidade de tais créditos, já objeto de celeuma resolvida pelo Superior Tribunal de Justiça, que validou a previsão legal, a parte final do artigo tem chamado a atenção, visto que não autoriza que o credor venda ou retire do estabelecimento do devedor os bens de capital essenciais a sua atividade empresarial durante o prazo de 180 dias contados do deferimento pelo juiz do pedido de recuperação judicial.
A controvérsia reside justamente na interpretação que o Poder Judiciário tem dado ao que seriam bens de capital essenciais do devedor. Como a Lei de Falências não define o termo, decisões conflitantes são comuns, especialmente em situações em que estoques ou matéria prima são objeto de garantia fiduciária. Especialistas na matéria e parte das decisões têm indicado que a locução investigada remeteria a bens tangíveis de produção, tais como unidades fabris, máquinas, equipamentos, ferramentas e outros que possuam a mesma característica, efetivamente empregados na atividade que a sociedade em recuperação desempenha, e indissociáveis a essa atividade.
Contudo, acumulam-se decisões que aplicam interpretação mais ampla sobre o que se enquadra no conceito de bem essencial em um cenário de dificuldades econômico-financeiras, no sentido de que poderia ser qualquer bem dado em garantia e que possa ser entendido pelo juiz da recuperação judicial, caso a caso, como essencial à atividade empresarial. Tais entendimentos, calcados na construção jurisprudencial do princípio da preservação da empresa, não raramente têm defendido que o estoque e até as matérias-primas da sociedade em recuperação judicial se encaixariam proteção legal, o que impede o exercício do direito de propriedade pelos credores. Ora, para uma empresa em recuperação judicial, certamente todo bem é essencial, mas não necessariamente se trata de um bem de capital.
Neste ponto, apesar do silêncio da Lei n° 11.101/2005, a definição de bens de capital não é estranha ao ordenamento. Seguindo as diretrizes da acepção econômica do termo, pode-se citar o Decreto n° 2.179/1997, relacionado à concessão de incentivos fiscais, que define bens de capital como “máquinas, equipamentos, inclusive de testes, ferramental, moldes e modelos para moldes, instrumentos e aparelhos industriais e de controle de qualidade, novos, bem como os respectivos acessórios, sobressalentes e peças de reposição, utilizados no processo produtivo e incorporados ao ativo permanente”. A aplicação demasiadamente extensiva do termo, portanto, não parece fazer jus ao objetivo da proteção legal inserida pelo legislador.
Não se pode negar que há decisões bem construídas, como recente acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que afastou o enquadramento de insumos como bens de capital essenciais (Autos n° 2012974- 11.2018.8.26.0000), contudo, do histórico das celeumas referentes à lei, dificilmente se observa um padrão de decisões que considere sistemicamente a relação entre a relativização de uma garantia em prol da manutenção de determinada empresa diante dos efeitos que tal posicionamento, em larga escala, pode causar ao mercado de crédito e ao spread bancário.
Ocorre que, apesar da existência de argumentos relevantes para ambos os lados, a lei é clara no sentido de que fora os bens de capital essenciais à atividade do devedor, demais bens objeto de garantia fiduciária devem ter a destinação prevista no contrato de financiamento ao qual a garantia é acessória. Do contrário, recorrentes relativizações de garantias resultarão em insegurança jurídica, frustrarão a forte expectativa de recebimento pelo credor e, consequentemente, limitarão o acesso ao crédito em geral, o qual também encarecerá, em prejuízo ao empresariado em geral.
Fonte: Valor Econômico