Algumas decisões dispensam o documento, enquanto outras trazem prazo ou a falência
A reforma da Lei de Recuperações e Falências desorganizou a jurisprudência dos tribunais sobre o que deve ser exigido das empresas que têm dívidas tributárias. Em alguns casos, a companhia é autorizada a seguir com o seu processo de recuperação sem o documento de regularidade fiscal – como vinha sendo definido. Em outros, determina-se prazo para a apresentação (60 ou 180 dias) ou mesmo a falência imediata.
Para advogados, essas decisões geram insegurança no mercado.
A confusão é tanta que uma mesma empresa recebeu duas decisões diferentes num intervalo de 14 dias. Foram proferidas pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Primeiro, ao julgar recurso apresentado por um banco credor, os desembargadores decidiram decretar a falência da companhia. Essa decisão foi dada “de ofício”. O credor não tratava das dívidas fiscais e não pedia a falência da devedora. Ele contestava questões relacionadas ao plano de pagamento dos credores privados que se sujeitam ao processo de recuperação judicial.
Depois, ao julgar pedido da Fazenda Nacional – esse, sim, atacando a falta de regularidade fiscal -, os mesmos desembargadores agiram como se não tivessem ainda decretado a falência. Deram prazo de 60 dias para a empresa se regularizar, sob pena de quebra.
A empresa devedora conseguiu suspender as duas decisões em recursos apresentados ao presidente da Seção de Direito Privado do TJSP, o desembargador Beretta da Silveira. A suspensão vale até que ele decida se o caso será enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou, se remetido, até a decisão dos ministros.
Essas situações, até bem pouco tempo, eram raramente vistas no Judiciário. A mudança deve-se, em grande parte, à reforma da legislação, que entrou em vigor em janeiro de 2021. A Lei nº 14.112, de 2020, atualizou a lei original, nº 11.101, de 2005.
A apresentação da certidão fiscal (CND) sempre constou em lei – desde 2005 – como um dos requisitos ao processo de recuperação. Mas essa regra era flexibilizada pelos juízes com o argumento de que não havia um parcelamento de dívidas tributárias adequado para as empresas em crise.
Com a nova lei, porém, essa situação mudou. As empresas em recuperação agora têm condições especiais para pagar os tributos devidos à União. Podem optar, por exemplo, pela chamada transação tributária, em que Fisco e contribuinte sentam à mesa para negociar. Nessa modalidade, as dívidas podem ser parceladas em até 120 meses e com até 70% de desconto em juros e multas.
Diante dessa nova condição a jurisprudência começou a mudar. Tribunais de, pelo menos, seis Estados têm decisões exigindo que a empresa esteja em dia com as suas obrigações tributárias para poder seguir com o processo de recuperação.
Estão nessa lista, além do TJSP, os tribunais do Rio de Janeiro (TJRJ), Minas Gerais (TJMG), Paraná (TJPR), Mato Grosso (TJMT) e Mato Grosso do Sul (TJMS). Esse dado é da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
O TJRJ foi o primeiro a interromper um processo de recuperação com base na mudança legislativa. A decisão foi proferida pela 16ª Câmara Cível e atingiu a Hotéis Othon.
A tradicional rede carioca, com dez unidades em diferentes Estados, entrou com o processo em novembro de 2018 e conseguiu aprovar o plano de pagamento aos credores em fevereiro de 2019. Para os desembargadores, no entanto, o plano não poderia ter sido homologado pelo juiz da primeira instância sem que a empresa tivesse apresentado o documento de regularidade fiscal.
A Hotéis Othon apresentou recurso. A decisão da câmara foi suspensa pela 3ª vice-presidência do tribunal e o caso encaminhado para julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O processo está sob a relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino e ainda não foi analisado (REsp 1997485).
O 3º vice-presidente do TJRJ, desembargador Edson Vasconcelos, que suspendeu a decisão da Câmara, afirmou que a jurisprudência do STJ permanece no sentido de que não se pode condicionar a recuperação judicial das empresas à apresentação do documento de regularidade fiscal. Ele cita, na sua decisão, que há julgados posteriores à reforma da lei.
Juízes de primeira instância que flexibilizam a regra também utilizam esse argumento ao conceder a recuperação judicial, mesmo sem que a empresa tenha comprovado a regularidade fiscal.
O procurador Thiago Silveira, coordenador-geral da representação judicial da PGFN no STJ, afirma, no entanto, que os ministros ainda não analisaram nenhum caso em que a recuperação foi concedida depois da reforma da lei. E, para ele, essas decisões que aplicam a jurisprudência anterior não indicam como os novos casos serão julgados na Corte.
Empresas em recuperação acumulam um volume enorme de dívidas tributárias com a União. São cerca de R$ 170 bilhões. Mas, segundo Silveira, após a reforma da lei, a regularização aumentou. Mais contribuintes apresentaram garantia à dívida ou aderiram a um parcelamento, por exemplo.
“Em julho de 2020 apenas 8,28% dos débitos dessas empresas estavam em situação de regularidade. Em abril deste ano já estava em 22%”, diz.
Para o procurador, uma empresa só se recupera de verdade se tratar toda a sua dívida, o que inclui a tributária. Silveira diz que a PGFN vai continuar batalhando pela legalidade do artigo 57, que prevê a apresentação do documento de regularidade fiscal – inclusive para recuperações anteriores à reforma da lei.
A possibilidade de uma empresa ter a falência decretada por não estar em dia com o Fisco é polêmica e alvo de muita contestação. Especialmente porque as dívidas tributárias não podem ser incluídas no processo de recuperação judicial.
A advogada afirma que um de seus clientes, uma empresa de ônibus do Rio de Janeiro, agiu dessa forma e foi liberado de apresentar a certidão tanto na primeira instância como na 2ª Câmara Cível do TJRJ (processo nº 0070135-03.2021.8.19.0000).
“Demonstramos que demos entrada no pedido de transação individual perante a PGFN e está em análise. Só que essa análise pode durar meses, às vezes anos, e isso não dá direito à certidão negativa de débitos”, diz.
Fonte: Valor Econômico